Criação
Dir-se-ia que tal como a arte, o verbo não tem, senão, poderes breves, que também através do verbo o espírito não faz mais que aparecer e desaparecer para suscitar nada além de vãos êxtases momentâneos... Mas se a vida é algo indomável, não quer dizer que o espírito, mais do que aspirar instantes de senhoria absoluta, deseja ser reconhecido permanentemente no próprio turbilhão?
Sibilla Aleramo, A pensadora.
O porto é um rasgo no tecido dos meus sonhos...
Doralice Cualquiera, 1910.
CRIAÇÃO
A artista lava as mãos e senta à mesa posta. Ela usa um vestido floreado preto sem sapatos que os combinem. No rádio uma milonga se imiscui na textura vital. A artista remarca as estampas do tecido do vestido que lhe parecem de profundo e obscuro mar, como sinuosos redemoinhos para embarcações desavisadas. E porque toda poesia é fundamentalmente imagem, ela se destaca do poema como um instrumento encantatório por excelência. Estas flores marítimas estampadas flutuam, assim, como que pela sala... elas escapam como música, pensa. Até que a milonga seja atravessada por um chiado infame: lógico que esse corte a faz lembrar de que deve comer. Analógica, a artista pega um garfo e o lança em direção ao rádio: uma bonita cena plena de apetites e reticências em que residem pardas todas as noites. Ha ha (floreios). Logo, ela toma da faca sem cerimônias, mas não a percebe como instrumento de gula. A artista não come: possui. O porto é um rasgo no tecido dos meus sonhos, e enquanto você lê, o mar está virando suas páginas escuras... a artista assim pensa, milongando faca e vestido. Manchando a neve de açafrão, como diria a sua vó. Sim, ela rasga o vestido com a faca enquanto você lê, observando gerações de flores e fios. Esse sonho a atrai, com suas apresentações nunca vistas. A artista e o vestido, como febre e fome noturnas: potência estabelecida. Por ser móvel, o lado de Fora do vestido forma dobras e pregas que constituem o seu lado de dentro, por isso uma flor se desprega com seu avesso sem cerimônias. A faca, uma extensão do espírito, promove assim um movimento de pensar a si própria. A poesia surge num terreno comum e até vulgar, neutra, fragmentando a unidade subjetiva. É com ela que a artista preserva um certo senso de humor e subtrai formas imprecisas de si mesma. Movimentos em que coexistem os encantamentos: a faca que agride uma flor, e depois outra, formando um universo de pontos "e" disformes, enquanto os deuses quadrangulares repousam hipocrômicos em milongas clicherizadas. Mas o preto nunca é especular, ou mesmo a noite, a faca e o vestido, a artista pensa. Quando de repente, ela repara na faca: o produto tem número e vem de Nova York, traz com ele uma crítica que se estabelece como um estado de carência e rebeldia. Como um blefe que pretende reviver a mesa posta, yes, yes baby. Não, não, a mesa não está mais posta, ela olha os objetos com uma distância febril. É atraída pelo Triângulo das Bermudas, ela quer Atlântida com rude franqueza. Dizem que o poeta é um primitivo... dizem, entre os náufragos. Podem cantar o que quiserem entre os dentes de ferros submersos. O garfo está fincado no rádio, que apenas chia, distante. A artista sai da cadeira e vai para o chão. O vestido esburacado perdeu a continuidade de sua pele. E a mesa, a sua utilidade infame. A artista fragmenta-se sob o brilho de uma lâmina mortal, como se lavasse novamente as mãos. As luzes de Nova York são o quê mesmo na primavera? Não importa, o interlúdio é mágico, nunca vai acabar (fato que a salva da extinção). Sem ir além do esboço, o tema é prodigiosamente rico, cada poema uma armadilha da urgência cômica e metafísica da posse, mas enquanto você lê, um mar está virando suas páginas escuras de açafrão. Isso, aceleração. O vestido está virando suas páginas escuras. A artista está virando suas páginas escuras. A artista volta ao seu instrumento. Com a faca ela estica os rasgos que foram arrancados. Alhea-se e admira-se: eu fiz, eu. Isso dá estrutura e redime, pensa. Ela, que por algum motivo, lembra do porto, lembra de multidões, lembra dos intercâmbios ontológicos, lembra de todos os vestidos à venda e da riqueza das estampas que figuram mulheres que cantam severas milongas em pardas noites sem eus. A artista olha para seu corpo despido de pele, de gente e de música, ruma para a potência estabelecida em algum lugar Fora do reconhecimento megaloblástico. Que importa quem desenha? Quem deseja? Deixa-te cair fincada na linha da vida, no centro do ciclone, num estado de velocidades e dispersões floreadas. As flores ex-citam a artista, ela estica os rasgos mutilados e desenraizados para elaborar uma nova cosmoposição com propositiva e falsa unidade, mas imiscuida da textura vital e que não vem de Nova York, nem da França, nem da primavera. Que provavelmente vem (e vai para) do mar que neste momento está virando as suas páginas escuras escuras escuras escuras... a artista tem medo e não tem medo, ela tem os dois, ela tem a noite 4 x 4 e. Com os rasgos friccionados pela faca, a artista resolve iniciar uma coleção de vestidos.
Aline Daka, dezembro de 2017.
REFERÊNCIAS
ALERAMO, Sibilla. A Pensativa/La Pensierosa. Trad. Adriana Aikawa da Silveira Andrade. (n.t.), n. 3, v. 2, set. 2011, pp. 146-163.
CESAR, Ana Cristina. Poética. Criação. São Paulo: Cia das Letras, 2013. COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.
CORTÁZAR, Júlio. Valise de Cronópios. Para uma Poética. São Paulo: Perspectivas, 1993.
LEVY, Tatiana Salem. A experiência do Fora. Blanchot, Foucault e Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
MENDONÇA, Vanderley. (Org.) Meninas que vestiam preto. Ao leitor. Denise Levertov. São Paulo: Selo Demônio Negro; Editora Hedra, 2016.
CITAÇÕES ESCANCARADAS:
Comentários
Postar um comentário