GOLPES
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Desenhando com: fotografias de arquivo pessoal mais Jane e Louise Wilson. |
GOLPES
Palavras
secas, sem destino,
Incansável
som de cascos.
Enquanto
Do
fundo do poço, estrelas fixas
Governam
uma vida.
Sylvia
PLATH, Palavras
Golpes
são tremendos, pois causam assombro. Eles abalam estruturas
construídas, torcem os movimentos, marcam as carnes, rasgam os
tecidos corporais e sociais, delimitam ou rompem fronteiras, dobram
ou assujeitam as pessoas ao impacto de forças inesperadas. Golpes
afrontam o movimento de nossas vontades e nos fazem constatar a
existência e o contraste de diferentes modos de existir, expressar e
fazer. Nesse contexto é que se dão as relações de poder, de
transgressões e de castigos, em uma multiplicidade de formas, tais
como as que são desenhadas nas páginas abaixo, a serem
correspondentes à escola, lugar à que somos destinados e depois
avaliados por nossos modos de ser, de poder e de saber.
Mesmo não sabendo direito como responder a isso ou explicar, na escola penso que nos damos por conta do quanto estamos governados pelo que nos foi herdado, do quanto devemos aos deuses e do que temos que assumir enquanto representações dogmáticas e autoritárias de nós mesmos, nos apontando um dedo num ato de "você é". O filósofo Gilles Deleuze escreveu em Para dar um fim ao juízo que "o juízo de conhecimento... implica uma forma moral e teológica primeira, segundo a qual a existência estava relacionada com o infinito conforme uma ordem do tempo: o existente como tendo uma dívida para com Deus" (DELEUZE, 1997, pág. 163). E a manutenção dessa dívida é infinita, pois impossível de ser saldada; ela corresponde a uma doutrina que já está dada antes mesmo que a percebamos. Essa doutrina "só é suave na aparência, pois nos condena a uma escravidão sem fim e anula qualquer processo liberatório" (DELEUZE, 1997, pág. 164).
Mesmo não sabendo direito como responder a isso ou explicar, na escola penso que nos damos por conta do quanto estamos governados pelo que nos foi herdado, do quanto devemos aos deuses e do que temos que assumir enquanto representações dogmáticas e autoritárias de nós mesmos, nos apontando um dedo num ato de "você é". O filósofo Gilles Deleuze escreveu em Para dar um fim ao juízo que "o juízo de conhecimento... implica uma forma moral e teológica primeira, segundo a qual a existência estava relacionada com o infinito conforme uma ordem do tempo: o existente como tendo uma dívida para com Deus" (DELEUZE, 1997, pág. 163). E a manutenção dessa dívida é infinita, pois impossível de ser saldada; ela corresponde a uma doutrina que já está dada antes mesmo que a percebamos. Essa doutrina "só é suave na aparência, pois nos condena a uma escravidão sem fim e anula qualquer processo liberatório" (DELEUZE, 1997, pág. 164).
Aliás,
durante toda a vida, nos espaços coletivos institucionais de
convivência, aprendemos uma série de regras e determinações nas
quais devemos nos curvar se quisermos ser considerados como
existentes, ou se quisermos ser vistos e ouvidos, assim como, se
quisermos nos movimentar e nos colocar resistentes em alguma
diferença, provocando mudanças em nossos modos de viver. Por outro
lado, em vias opressoras, quando consumidos os seus valores, que é
quando fazemos o seu jogo como sujeitos passivos, as impossibilidades
aparecem sob outros aspectos, como quando as pessoas são tomadas por
sentimentos reativos, como por exemplo, o medo de perder, o de não
ser o suficiente perante a tal modelo, o de carregar a culpa por
todos os erros ou de não alcançar aquilo que se almejava após
tantos esforços de consentimento1.
À força de golpes de subjetivação, esses modos de viver tendem
para as linhas de morte e de (auto) destruição, pois nos esvaziam
as vontades, estancando o fluxo dos desejos, nos paralisando. As
meritocracias, as leis sob punições ou quaisquer exigências de
submissões (linguísticas, territoriais, imagéticas...) não raro
extremadas, tendem à produzir as misérias do corpo, que também é
inteligência e pode padecer à força de violências... trazendo a
necessidade da movimentação de forças de desvio e resistência
mais poderosas e articuladoras inaugurando um combate.
A
partir desses pensamentos, caberiam aqui muitos relatos de
experiências compartilhadas em narrativas que traduziriam situações
violentas como essas em nossos cotidianos, mas que, de certa maneira,
estarão ligadas ao que destaco a seguir na fala da artista iraniana
Shirin Neshat, para pensarmos em como estamos submetidos às relações
de força que nos golpeiam de encontro à vida. E assim, focando
também, em questões circunscritas nas subjetivações da mulher. A
artista, que vive no exílio desde os anos 70, submetida também às
subjetivações ocidentais que marginalizam e estereotipam as
mulheres (determinando também as orientais), mesmo enquanto
produtoras de arte e de conhecimento.
Em entrevista concedida para a televisão2 sobre seu filme A última palavra (2003), a artista faz referência a uma experiência de interrogatório alfandegário vivida por ela no Iran, país natal no qual desde a Revolução Islâmica de 1979 adquiriu uma política extremista, para comentar sobre a produção de uma cena. Considerando as relações subjetivas de limite e choque entre os valores e os modos de vida que vivenciamos pensando os golpes, torna-se importante dar visibilidade ao que se segue. Neshat ressalta o valor (a violência) de um juízo moral direcionado à ela como mulher e artista, que na sociedade iraniana (não estamos muito longe disso) vem com a força de um golpe de imagens:
Se
um artista, se um criador, tivesse que enfrentar finalmente a seu
interrogador (...) para mim esse homem não era simplesmente um
interrogador da República Islâmica do Iran, senão que era quase
como Deus (...) se realmente tivesse que ir e enfrentar a pessoa que
te aterroriza, como eu, que sempre estarei aterrorizada com o homem
que me interrogou, o que poderia sair de seus lábios e o que poderia
sair dos teus? Como se compara esse mundo de criatividade e de
imaginação com a realidade que te rodeia de palavrórios e slogans
vazios? (NESHAT, 2005).
Pela
fala de Neshat podemos visualizar em que estamos agora envolvidos,
ela constrói uma cena no filme inspirada em sua própria
experiência, em que um militar iraniano ostensivamente interroga uma
escritora, e diz:
Mulher!
Tens cruzado a linha. Tens escrito palavras subversivas. Mulher! És
culpada de corromper a mente das pessoas. De envenenar a alma das
pessoas. Tua imaginação é obscura. A obscuridade é onde mora o
diabo. E tu, com tuas palavras, cheias de pecado, cheias de
obscuridade, de horror, de luxúria, de ira.
A
escritora responde aos prantos, que compreendemos como parte de uma
situação como essa, mas em afirmação poética, citando versos do
poema que eu uso neste anexo como epígrafe de abertura, o que
consterna a figura autoritária:
Eu
venho da terra das bonecas. Das sombras das árvores de papel. Do
jardim de um livro de fotografia. Da secura dos juízos estéreis, de
amizade e de amor. Das poeirentas ruas da inocência. Dos anos em que
as pálidas letras do alfabeto nasceram. Provenho das raízes das
plantas comedoras de carne, com o som do terror das mariposas quando
as crucificam em um livro com uma agulha.
Essa
disjunção, essa desconexão, esse contraste, esse enfrentamento da
personagem frente ao juízo do poder de um Estado totalitário, que
para ela é Deus, marca um golpe de vida que ela devolve à sua
violência e assinala uma capacidade de recuperação do corpo sob
qualquer circunstância. A cena desse filme golpeia tão fortemente,
que penso que a comunicação entre eles, o entendimento do militar,
por exemplo, é o que menos importa. Aparentemente temos a figura
dogmática desse homem que é Deus, entrevistando uma mulher
artista, tal como ele mesmo a define em sua fala, mas entretanto,
ela já não corresponde mais a uma mulher, porque em sua
poesia ela escapa, não se conserva numa forma que se aprisione. Nada
do que ele fará poderá fazê-la retornar de suas experiências, de
sua própria fala, e menos ainda, de convencê-la a ser uma mulher.
Nas palavras de Jacques Derrida, que pensa a mulher em Friedrich Nietzsche (2013), encontro algumas imagens para as sensações que essa experiência produz, onde "não há uma essência da mulher porque a mulher afasta e se afasta dela mesma" e que talvez, faça dela uma "não-identidade, não-figura, simulacro, abismo, o corte do espaçamento, a distância mesma, se ainda se pudesse dizer, o que é impossível, a distância mesma" (DERRIDA, 2013, pág. 32). É a partir do autor que pergunto, que tipo de "acordo" poderia contornar essa distância?
Num
depoimento em seu caderno de notas Cambridge Notes (1956) , a
poeta Sylvia Plath escreve algo que pode se encaixar num modo de
observarmos essas duas maneiras de pensar e sentir o mundo, já que
as constatamos agora nas duas figuras extremas do militar e da
escritora no filme de Neshat. Plath expõe para si mesma:
O
que mais me apavora, penso, é a morte da imaginação. Quando o céu
lá fora é só cor-de-rosa e os telhados, negros: aquela mente
fotográfica que paradoxalmente nos revela a verdade, mas a verdade
do mundo, que nada vale. O que eu desejo é aquele espírito
sintetizador, aquela força "que dá forma" e que faz
rebrotar prolificamente criando suas próprias palavras com mais
inventividade do que Deus. Se eu me sento aqui e não faço nada, o
mundo prossegue batendo como um tambor flácido, sem significado
(PLATH, 2005, pág. 136)
Plath
nesse fragmento de uma anotação para si mesma, expressa a
necessidade de uma força a ser projetada em sua escritura como
recriação do mundo e de si. O que produz um novo olhar que dá
forma para uma realidade poética não conformada, de encontro com as
imagens que a autora denomina como "fotográfica", para
expressar o seu contexto como algo dado, fixado e não contingente. É
ao trabalho de um texto que ela se refere, e do que poderíamos
chamar de um exercício poético de resistência que a salva numa
nova perspectiva de vida. Devolvendo à vida o seu inconstante
movimento, ela se torna matéria para criação de poemas, que de
retorno, à força de um golpe, a recria, tal como nos versos do
poema Palavras, citado na epígrafe do texto:
"Machados / Que batem e retinem na madeira, / E os ecos! / Ecos escapam / Do centro como cavalos. / A seiva / Mina em lágrimas, como a / Água tentando / Repor seu espelho / Sobre a rocha / Que cai e racha, / Crânio branco, / Comido por ervas daninhas. (...)" (PLATH, 2005, pág. 89).
Transitar
em diferentes perspectivas nos permite renová-las, procurando lidar
com elas do modo como nos exigem, mas às vezes esse trânsito exige
uma mudança que pede o dispositivo de um golpe. Penso que nos
fragmentamos nas oscilações entre os choques e os fluxos, entre as
euforias e as tranquilidades, as ações e as impossibilidades. É
aceitando a vida em suas limitações que aprendemos uma posição
que é intolerada pelas forças brutas que podem nos fazer frear.
ALINE DAKA, dezembro, 2018.
NOTA DE RODAPÉ: Na ocasião do 25 aniversário de Metropolis (16/11/2005), traduzida por mim do espanhol. link: https://www.youtube.com/watch?v=URoe2OUQvY4. Também podemos ter contato com o pensamento da artista a partir de sua visão sobre seu exílio e a arte no vídeo: https://www.ted.com/talks/shirin_neshat_art_in_exile. Acesso em 01/10/2018.
Texto publicado na Revista Alegrar # 22: https://alegrar.com.br
/alegrar-22/
REFERÊNCIAS
DELEUZE,
Gilles. Crítica e Clínica. Rio
de Janeiro: Ed. 34, 1997.
DERRIDA,
Jacques. Esporas: os estilos de
Nietzsche. Rio de Janeiro: Nau
Editora, 2013.
NESHAT,
Shirim. Shirim Neshat: 25
aniversário de Metropolis.
Metropolis, 2005. Disponível em: <
https://www.youtube.com/watch?v=URoe2OUQvY4>.
Acesso em 01/10/2018.
PLATH,
Sylvia. Poemas.
São
Paulo: Iluminuras, 2005.
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