Cacografias e Hilda Hilst
Cacografias
e Hilda Hilst é um ensaio publicado no blog do Instituto Hilda
Hilst, escrito com uma residência artística na Casa do Sol em maio
de 2017 vinculada à UFRGS/FACED - DIF.
Para
acessar:
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Cacografias
e Hilda Hilst
Aline
Daka
Na
residência na Casa do Sol do Instituto Hilda Hilst em maio de 2017
eu estive à procura de elementos sensíveis e dispersos para compor
um dos ensaios poéticos de minha dissertação de mestrado, que, é
importante dizer, está sendo feita no formato de uma arte
considerada menor: a de uma história em quadrinhos (HQ).
"Cacografias" aparece no título quando trabalho com a
matéria-prima fragmentária, dispersa, recortada, solta, ilegítima,
considerada "ruim" e criada por nós a partir de ruínas...
isso porque trabalho com o tema "mulheres artistas e criadoras
marginais" no qual entra a poeta Hilda Hilst como uma guerreira
sobrevivente. Trata-se de criação e homenagem, mas também da
resistência de afecções, para que possamos nos afetar sempre e
novamente, nos sensibilizar em memória contrapondo o apagamento
histórico (legitimador) que assombram as mulheres em arte. Pesquisar
sobre artistas mulheres é visualizar-se num turbilhão de imagens
que são urgentes e dispersas, é deparar-se com uma situação de
resgate de existências em que aprendemos a guardar-cuidar de nossas
referências como uma espécie de manutenção daquilo que, sabemos,
são também nossas próprias vozes. Como "cacofonias" que
podem gerar outros arti-fíccios quando criamos com elas. Não
seria esse o movimento arquivístico do pensar-poeta que a tudo
considera em seu trabalho?
Caco,
sim, de caco mesmo. Fragmento, pedaço, estilhaço... ou qualquer
coisa considerada como gasta, quebrada, incompleta... ruim, má,
menor, ínfima. Como uma velha senhora, por exemplo, instalada no vão
de uma escada a contar esfacelamentos que ninguém ouve, ou uma
menina de pernas abertas em uma lagoa a ficar pensando sobre "pernas
abertas" em um caderno rosa de mentira1...
personagens menores, coisa "insignificante", podem dizer,
então é. Mas só aparentemente, e numa perspectiva apenas, de
outras tantas... Isso se nos dispusermos a tecer nossas próprias
versões atravessadas ao que chamam de "todo", "inteiro",
"obra", "produto", "verdade" e "é
isto". Grafia, porque trata-se de desenho e palavra em ato,
in-puro desejo procurando viver em mim, em ti, na poeta que ainda
está. "Cacografias" assim, são como exercícios de
desejo, de visibilidade e de forma, feito de sonhos e de sombras...
coisa subjetiva, coisa mal-dita, pois é.
De
relatos de sonhos, desenhos e grifos em livros o desenho-desejo se
mostra para que toda distância seja recuperada como forma, mas forma
híbrida, pungente. Fui assim afetada pelas muitas sutilezas
"ínfimas" deixadas pela poeta em seus vestígios, nas
sombras pela casa e em papéis gastos e soltos, mas que mostram a
força de seu processo de trabalho, de sua luta como poeta e mulher
para viver, e que não são muitas vezes considerados como "obra".
Os
arquivos consultados no CEDAE-Centro de Documentação Alexandre
Eulálio, da UNICAMP - Universidade de Campinas foram uma fonte que
complementou
as
intensidades vividas na Casa do Sol. Selecionei
nessa
pesquisa desenhos e rascunhos poéticos sem maiores pretensões e
anotações
noturnas de sonhos que me levam a compor as
páginas
de quadrinhos com ela.
Páginas-sensação,
páginas vivas.
A
figura de Olga Bilenky também foi fundamental para a construção de
uma presença poética de Hilda Hilst; sensível, guardiã, como uma
alma viva da memória material e imaterial da poeta e do que foi
vivido em sua presença, junto com ela, na casa. Tudo cotidiano,
circundante, voz, sombra, sonho, em que aos poucos vamos tomando
distância do mito e flexionando a poesia na própria vida. Tão crua
e fragmentada, a vida, como não poderia deixar de ser. "Vou
atrás das sombras da poeta para ver se é mulher..." - há uma
mulher? Sim, mas há muitas nela... "Alguém, uma mulher nua com
desenhos no corpo resolve voar e cola-se no teto"... cacografias
do desejo.
Aline
Daka é mestranda em Educação pela UFRGS e desenha-deseja.
Publicado originalmente no blog do Instituto Hilda Hilst.
1-
Em referência às personagens dos livros A obscena senhora D e Lori
Lamby, de Hilda Hilst.
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