Zonas Obscuras de Sylvia Plath


ZONAS OBSCURAS DE SYLVIA PLATH _ESPIRITOGRAFIA
Aline Daka 


Noite. A tenebrosa monção de meus cabelos emaranhados sua no óleo rançoso do lençol. Percebo-me escamosa. Minha coluna é frágil. Axioma do inconsciente, oxidando o que não é flexível. A janela bate com a ventania, Pláfth, Pláfth, PLÁFTH! A lua fria e impassível sopra seu gélido hálito na minha garganta, o beijo mortal. Mas não levanto. Vem! Não grito. Oh meu amor, meu delírio, quando sufoco, eu revivo, ecoo, vem! A lua é indiferente aos meus uivos internos. Pura agonia! Quando abro minha boca a pele é mole, como um molusco espumando... sem som. O que sai dela são disformas, não ruídos. Sou uma oferenda na melancólica casa de Nýx, impotente, enfim. Esse é o silêncio das almas atormentadas.

Acordar é erguer assustadoramente o peso de um corpo e perceber que as persianas da janela é que voaram. O vento varrendo o quarto como uma lâmina, o céu tempestuoso (e é você quem tem uma pele). Não, não respiro mais. Mas a minha sorte é que ainda é noite e eu tenho uma chance.

Ergo-me num salto, procuro meus sapatos pretos de vinil, mas só encontro um par, o outro ainda deve estar pregado na parede, ao lado dos postais. O visto. - Meus cabelos estão cheios de nós! Encontro uma escova, ela não penetra. Há uma histeria em todos os objetos pessoais, penso. Todos os dias parcelo meu espírito em rituais inúteis, mas nunca morro! É assim que facilmente a esqueço e prossigo assim mesmo.

Desastrada, desço os primeiros degraus da escada, mas tropeço nas dobras do tapete. Lapsos. O peso do corpo novamente dá as suas horas. Minha cabeça para trás, demente. Encontro meu rosto com as mãos, retiro dele um alfinete que estava disfarçado entre os pelos, suaves traidores, do carpete negro. Negro aviso. Minha tragicomédia.... muito mal desenhada, preciso me lembrar disso.

Fecho os olhos para lembrar e isso me insufla. Em 180 graus me colo no teto. Me arrasto agora até o lastro que corta as peças seguintes, quero escapar. - Já estou muito alta! A escada está lá embaixo. A escada gira, quer ser ouvida. É ela quem me lembra do martelo guardado debaixo do armário da cozinha: sei que preciso dele pra concertar a janela: POMMMM, POMMMM, POWWWWW... objeto maravilhoso! Agora estou surda, preciso dele. Como cheguei aqui? Faço um gesto dócil de fuga, e começo a rir.

Eu rio e faço de mim a pura polpa perversa do riso. Escavo o riso na cena mais ridícula que se possa imaginar. Isso me esclarece. Tanto, que despenco. Projétil que não vingou, numa queda blasé.

Mas continuo, como já vi muitas mortes, sei que esta não é para mim. Agora estou somente cega, tateando. Oh, meu deus, que sou eu!

O leite está morno e ferve na cozinha, ele me chama. Penso que o branco e a textura lívida podem me fazer enxergar novamente. Sigo o cheiro: profético. Estou toda molhada, assim posso escorregar nele. Deslizo até a cozinha, sei o que vim fazer aqui. Coloco minha mão no fogo mas não me queimo, minha coragem me espanta. Preciso do leite, neve, giz, ou coisa assim. Estes deuses de papel. Preciso. Preciso tanto que quase me esqueço do martelo aos meus pés.

Para tomar o leite com as duas mãos preciso subir no martelo com a ponta dos dedos de um dos pés. Sou escrupulosa, imagine! Sempre reinvento minha própria queda. Por isso ninguém me ama? À golfadas, numa guela bastante sólida, vomito. Entendo que o leite se bebe de dentro pra fora, essa é a iluminação que esperava.

Prendo o martelo com os dedos do pé. Vou arrastá-lo pelo corredor fazendo barulho, avisando o vento que estou chegando. Aí vo-o-u eu! Nýx me sussurra "essa é a sua chance! Channnnnnnceeeeeeeee". Na falta de uma musa, você é a minha morte amada. Mas o vento me golpeia. Não consigo andar. Na porta do quarto eu escorrego como em uma esteira, que condição ordinária! Penso nos aleijados, nos inválidos. Quanta idiotice! Isso tudo faz parte da existência?

O ambiente em que vivo é só o ambiente em que vivo, prescrito em nossa cultura. Eu faço o que posso, lançando minha sombra onde não alcanço. É assim que chego onde está a abertura da janela sem cobertura, sem proteção, a minha. Mas não, não posso fazer nada se a persiana está estirada lá embaixo, no fora. Não há concerto possível. Martelo pávido. Não salto. Destino número um.

Destino número dois. Desperto assustada, abro os olhos e desta vez é de verdade, a verdade com mais peso que a anterior. Sopro de tensão. Olhei para o teto e vi as linhas de sol pelas frestas da persiana. Indolente, não posso fazer mais nada, o dia acima de mim. Me levanto, é uma manhã morna, como o resto de leite, azedo, ainda debaixo da minha língua. O que foi que eu fiz para não me escovar corretamente? Não tenho amor suficiente por mim mesma? Onde está meu sapato? O preto também não brilha, parece que perdi todas as escovas da casa, mais uma vez.

Irritada comigo mesma, tenho a sensação de que perdi uma boa lembrança. De que escreveria com ela um ótimo poema, talvez, ou de que faria um desenho tão vivo que ninguém poderia ignorá-lo. Mas não os encontro mais, sobre o que eram mesmo? Devagar as sensações da noite se desfazem, como nas mãos de Penélope, retardando uma obra friamente. No lugar, encontro roupas para vestir, penso que elas podem disfarçar algo, se eu não me pentear esta manhã...

Aline Daka, julho de 2017.

Do fundo do poço, estrelas vivas, governam uma vida.
Nesta manhã nem sol, nem luzes podem controlar essa saia.
S. P.

REFERÊNCIAS

CORAZZA, Sandra Mara. Docência-pesquisa da diferença: tradução transcriadora. (…) / Ensaio sobre eis aice: proposição e estratégia para pesquisar em educação. Educação e Filosofia, v. 31, n 61, 2017. / Os cantos de Fouror. Porto Alegre: Editora Sulina; Editora UFRGS, 2008.
KUKIL, Karen V. Os diários de Sylvia Plath. 1950 – 1962. São Paulo: Editora Globo, 2000.
PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. São Paulo: Editora Globo, 1991. / Ariel. Campinas: Verus Editora, 2007. / Desenhos. São Paulo: Editora Globo, 2014. / Poemas. São Paulo: Iluminuras, 2005.


*Ilustração para o poema "Ariel" publicado originalmente na (n.t.) Revista Literária em Tradução #3: http://www.notadotradutor.com/revista.html

- Fotografias abaixo de um arquivo pessoal.



 

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