A potência dos signos
Aline Daka, ensaio de dezembro de 2016 e página de HQ de maio de 2017. FACED/UFRGS - Filosofias da Diferença e Educação. Na HQ homenagem a Forug Farrokhzad e Farzaneh Hadmer, poeta e fotógrafa iranianas.
1. A potência dos signos
(...) planto minhas mãos no jardim verdejarei eu sei eu sei eu sei e andorinhas no vazio entre meus dedos sujos de tinta ovos irão pôr (...) há um beco que meu coração roubou dos bairros de minha infância (...) eu uma pequena fada triste (...)
Forugh Farrokhzad, fragmentos do poema "Outro nascimento", trad. Miguel
Sulis, publicado na (n.t.) Revista Literária em Tradução #5. Fonte:
http://www.notadotradutor.com/edicoes.html acesso em 25/09/16, às
18h05min.
Planto minhas mãos no jardim. Ele é o mundo. Elas também. Mas devo me deter no movimento da última sensação-terra. Assim verdejarei, eu sei, eu sei, eu sei. Pois a potência de imagens-signos (de outrém) no meu-desenho-outro me parece, e me cai, como uma (consistente) memória (potencial) em contínuo processo, e que nos interrelaciona. Trágica. Ficcional. Dramática. Inacabada. Memória que surge do movimento das andorinhas no vazio entre meus dedos sujos de tinta. - Seus ovos prometidos e órfãos são como paisagens, perspectivas fecundas de novos jardins e também de novos vazios. E se eu não posso apreender o signo, se ele me escapa, como a dobra, ritornelo intempestivo atravessador de imagens-casa e de suas ausências, acho que posso compreendê-lo como movimento in-puro. É desse modo que preciso amar esse movimento que é quase inapreensível, que é d-obra da vida, mas também da pequena fada triste roubada de um beco de infância, como uma necessidade primeira para se tentar escrever sobre ele.
Se era uma vez a milésima parte de um movimento de signo que se consegue, e que se pode, apreender, ela só dança se conseguirmos deixá-la solta poeticamente. Sei que conseguimos mentir, afinal, acreditamos que a controlamos fria e passional-mente a ponto de criarmos uma coreografia. (Andorinhas voam em movimentos circulares, desenhamos o rastro, por ex.) E de que forma, senão assim, se conseguiria retirar o Signo de uma definição encurralada em becos?
O signo é uma quebra, uma impossibilidade jogada no mundo por nós mesmos. Ainda que tenha graça, como a pérola polida da concha incomodada ou o rigor de Valéry que cai comicamente dos céus para se transformar em violento poema. Essa queda do rigor me lembra a das "Mujeres Caídas", aquelas que foram jogadas na superfície da terra de forma mundana, expulsas do paraíso triangular e reinventadas por si mesmas no plano, as outras de sí. É aqui que finalmente uma dissertação se localiza e "mulhera-se", abandonando as cavernas-becos do ser, como a pequena fada triste que vai sempre retornar pra que se tenha uma milésima parte de um texto inapreensível, ou de infâncias. E para que se voltem contra si mesmos: fada e texto, suposta totalidade e inventado pedaço.
O eu vestido de fada triste foi encontrado para ser reinventado. Ele é gerado com os signos-ovo de um pássaro-outro que sempre escapa. Imagens andorinhas anônimas que sobrevoam os vãos. Eu-invenção que mal consigo agarrá-las com os ansiosos dedos-tinta. Tentativas de inventariar imagens, selecionar o potencial e arquivar o desejo para que ele se corrompa mortalmente em aves e ovos. É a construção de sentido que mal se preocupa com o que não cabe na seleção, arbitrário com aquilo que é selecionado, mas também com o que é abandonado nos espaços vazios (aquilo que não é enterrado para verdejar).
E como reconhecer o inimaginável? O Fora? O silêncio que não seleciona uma fada triste para compor uma dança é o signo do silêncio sem fada e sem a necessidade de mulherar. Entre-tanto. Pois a casa vazia de Lógica do Sentido de Deleuze é feita com muito esmero, sem que haja esmero ou casa para serem medidos. Por isso os artistas veem a arte em tudo e acreditam que ela seja "libertadora". A arte "liberta" tanto as vontades de sentido como as vontades nonsense do que se possa entender por "liberdade". Somente ela habita, para se poder ter a lembrança do vazio de uma casa impossível. Artistas são verdadeiras fadas cômicas que colecionam pérolas e passam horas na frente de conchas muitas vezes em silêncio acreditando estarem em casa sem que haja casa ou pessoa alguma... "o vazio é para o autor".
2. Produzir o produzir
Se não fosse a arte, os signos do silêncio tomariam conta? A arte não se detém justamente no que não pode ser dito? Susan Sontag escreve sobre o silêncio como "uma zona de mediação, de preparação para o aprimoramento espiritual (Valéry), uma ordália que finda na conquista do direito de falar" (SONTAG, 2015, p. 13) e diz que "uma vez que o artista não pode literalmente abraçar o silêncio e permanecer um artista, o que a retórica do silêncio indica é uma determinação em perseguir suas atividades de forma mais errática que antes" (SONTAG, 2015, p.19). É aqui que o signo do silêncio, ou a milésima parte dele, se rompe. É por necessidade que a arte é uma possibilidade de territórios, e é por necessidade que esses territórios precisam ser moventes, maleáveis e se transformar novamente em cacos para manter a continuidade. É o outro que precisa retornar e se impor sempre: o indecifrável silêncio dos frágeis eus inventariados. Acessível somente enquanto criação de possibilidade de mais sistemas de signos...
Fotografia retirada de uma cena do filme "Khaneh siah ast (A casa é negra)" dirigido pela poeta iraniana Forugh Farrokhzad, documentário de 1963. O filme é uma montagem poética a partir de imagens de uma colônia de leprosos. Ele pode ser assistido com legendas em francês no link:https://www.youtube.com/watch?v=RTOTPwVNznQ
A tentativa de escrever para mim acaba sendo ainda mais "estrutural" que o desenhar, tem sim uma forte dimensão governada pelo Logos e precisa de super forças de outras espécies para "combater a questão do juízo e a questão moral do pensamento" ou da "representação". Ditos de aula, lembro também do "multiplicar os eus", placa de saída do labirinto de Proust, que como estratégia, é para mim, o multiplicar das imagens. Mas não como "uma valendo por outra" e sim, como imagens valendo por sí mesmas, morrendo-várias e renascendo-outras a cada movimento de diferenciação ou encontros com tesouras. Tudo faz parte da política do reinventar - a arte como antídoto de uma consciência cristalizada sobre si mesma. Acredito que essas relações entre as milésimas partes de signos são matérias para montagem, recorte, composição e abandono. Um tanto de indeterminação em vários "entres" de todas as combinações e conflitos produzidos. Palavras e traços-silêncios (mesmo que sejam rostos ou figuras, como as da fada triste, a de Farrokhzad ou a de Sontag) cuja projeção é infinita já que propõe continuidades absurdas.
3. O desenho-outro
Maneirismos e formas de estar, mundos que se formam a partir de figuras-mundos. Eu me envolvo-envolto em fotografias e imagens de arte. Estou com Farrokhzad e a fada triste quando encontro Sontag que, agora, vai encontrar Tereska. Todas elas são meio personagens conceituais e meio personagens poéticos, ou figuras estéticas (DELEUZE, GUATTARI, 1991). Já procurei dominar os conceitos de uma e outra figura a partir de Deleuze e Guattari, e até de Rolnik, mas insisto em perdê-las nessas misturas. Principalmente quando pretendo "mulherar" em milésimas partes de signos-figura, que na verdade, não são mais que sensações, ou como a fabulação de um apagamento identitário...
Tereska, em silêncio, encontra a fada triste num beco de infância. Ela, intempestiva, desenha um redemoinho no chão com um giz e aponta pra ele. A fada triste, desértica, sabe que é um mergulho: todo um universo em potencial ali se concentra (e se fere). Mas para desnovelar essas linhas, que foi o que pensou logo em fazer, seria preciso um crivo-traço de corte. A fada triste sabe que tem uma tesoura em algum lugar de si, mas espera o próximo ato de Tereska para se juntar a ela. Aquele ato que não foi fotografado por Seymor... que petrificou e vendeu a última sensação de Tereska pra UNESCO, afim de configurar o rosto dos restos infantis da Segunda Grande Guerra. Essa imagem acabou se tornando o rosto de uma doença provocada pela violência nazista... esse rosto trágico define Tereska e a aprisiona na norma, no signo, agredindo a ilha deserta da pequena fada triste.
Encontro de Forugh Farrokhzad e Susan Sontag.
...e eu sinto uma intensa vontade de desenhá-las a partir dos recortes desse limite. De fabular algo aberto para além de suas predestinações como Signo, ou utilidade, ou Verdade, ou significado único canalizado em representações e interpretações que possam ser projetados. Entendo que há um potencial de fazê-las mulherar no inacabado de suas supostas raízes... o que não é gratuito, pois devém da necessidade de desmontá-las para colocar em questão certas imposições.
Há sempre uma duração poética em qualquer jogo-colagem-recorte que exige a abertura de outros tempos para o pensamento e para a construção de novas sensações. Esse tempo criado é necessário, pela urgência em atualizar e subverter as imagens contra si mesmas e contra um eu-autor, supostamente. Entre tanto "quem fez isto? fui eu", o que é arbitrário, mas também mágico. - As ficções são sempre uma fonte, tal como uma história de criança que nunca termina de ser contada (quem tem medo do nômade?).
Mas não são todas as imagens que seleciono que portam narrativas tão fortes como estas escolhidas para o texto, legitimadas como poéticas ou históricas, por exemplo. Às vezes, é a própria imagem-órfã que me atrai pela violência do seu potencial como novelo emaranhado. Dessas práticas surgem novos artifícios, formas de atuar no mundo, nas subjetividades e na política das imagens >< vida. Algo que pode sempre me levar até as infâncias de becos roubados... um lugar fabricante de fadas desérticas loucas para encontrarem com Tereskas da vida para juntas promoverem resistências... mas um lugar longe de ser originário, pois não pertence a ninguém, afinal, Deus não existe. E sim, há uma grande afetividade envolvida em todas essas impossibilidades...
Na foto está Tereska, uma menina numa residência da Polônia para crianças com distúrbios de guerra. Ela cresceu num campo de concentração nazista. Na ocasião, a professora pediu para ela desenhar a sua casa no quadro negro e ela fez seu traço quando foi fotografada por David Seymor em 1948. Logo, foi julgada por "não saber desenhar a imagem de uma casa". Essa fotografia foi publicada pela UNESCO para fins de documento sobre a Segunda Guerra. Fonte: http://rarehistoricalphotos.com/girl-concentrationcamp-disturbed-children-1948/
Tradução
do poema de Farrokhzad por Miguel Sulis, publicada originalmente na
(n.t.) Revista Literária em Tradução # 5:
http://www.notadotradutor.com/edicoes.html
REFERÊNCIAS
ARTAUD, Antonin. Linguagem e vida. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2004.
DELEUZE,
Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Editora Perspectiva, 1969.
DELEUZE,
Gilles; GUATARRI, Félix. O que é filosofia? São Paulo: Editora 34,
1991.
FARROKHZAD,
Forugh. outro nascimento|تولدی
دیگر.
Trad. Miguel Sulis. (n.t.), n. 5, v. 2, set. 2012, pp. 09-26.
SONTAG,
Susan. A vontade radical: estilos. São Paulo: Ed. Schwarcz S.A.,
2015.
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